Uma estrangeira no mundo

"Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim." – Jo 15.18

Deus é Vermelho: o cristianismo na China, na visão de um não-cristão


Hoje, mais uma vez, dividirei com vocês uma leitura. Nesse caso, o livro Deus é Vermelho: a história secreta de como o cristianismo sobreviveu e floresceu na China comunista, de Liao Yiwu, Ed. Mundo Cristão.

Esse livro é o relato bastante emocionante de um escritor não-cristão, que um dia se viu pesquisando sobre o cristianismo na China, e após anos de entrevistas e viagens por várias regiões desse país publicou um relato maravilhoso, vindo de católicos e protestantes, com suas agruras, sofrimentos, alegrias, tristezas, mas acima de tudo perseverança e esperança em Cristo e em Seu Reino.

Esse livro não é recomendado para os adoradores da Teologia da Prosperidade, pois o cristianismo vivido por esse irmãos verdadeiramente fiéis será não como um tapa, mas como um soco com luvas de boxe (não de pelica).

Enfim, existe quem viva na pureza e na simplicidade do Evangelho, e sendo duramente perseguido por isso. Passei da metade do livro hoje (são cerca de 230 páginas), e tem sido muito edificante para mim.

Só para dar um gostinho, como sempre, o prefácio deste livro. Fiquem na Paz que excede todo o entendimento humano.

O caminho da montanha é vermelho

“Cada centímetro de solo sob meus pés era vermelho, brilhando sob o sol fraco de inverno, como se fora encharcado de sangue”

Anotei essa observação em meu diário no inverno de 2005, enquanto trilhava um caminho estreito de uma montanha em Yunnan, província no sudoeste da China.

Eu havia chegado a Yunnan um ano antes, fugindo dos agentes de segurança pública que apareceram para me interrogar por entrevistar membros da Falun Gong. O medo da prisão me levou a saltar do segundo andar de meu apartamento. Fugi para a cidade ensolarada de Dali, onde consegui abrigo temporário na casa de um amigo. Como um rato se esgueirando do esconderijo, nesse caso a bacia de Sichuan, sacudi a poeira, estiquei meus ossos na praia do lago Erhai e retomei minha vida de escritor e músico, tocando minha flauta chinesa na rua e nos bares, e entrevistando pessoas e escrevendo sobre elas.

Falido e deprimido numa cidade estranha, eu me desliguei de meus amigos em Pequim e Chengdu. Durante o dia, perambulava pelas ruas, acompanhava mendigos, vendedores ambulantes, músicos e prostitutas, ouvindo-lhes a história de vida. À noite, encharcava minha solidão com licor, por meio do que fiz até uma inesperada amizade com policiais à paisana enviados para monitorar minhas atividades. Ao contrário do que acontecia em Sichuan, os policiais em Yunnan nunca recusavam uma bebida grátis e não tinham escrúpulos em serem meus companheiros de bebida. Mesmo num estado de alta embriaguez, eles não se esqueciam de andar na linha do Partido, dizendo quanto tentavam proteger o sistema comunista, e que isso era bom para a China. Mas beber não foi uma boa saída e até piorou meu sentimento de solidão.

Então, no final de 2004, encontrei um cristão, conhecido entre os aldeões locais como Dr. Sun, um médico. Depois da conversão ao cristianismo, ele abandonou a posição como reitor de uma grande escola de medicina perto de Xangai e partiu para as áreas rurais de Yunnan, curando os doentes e espalhando o evangelho. Naquele dia, ele estava realizando uma cirurgia de catarata dentro do barraco onde vivia meu amigo em Lijiang. A paciente era uma velha senhora, pobre demais para pagar pelo procedimento no hospital estatal.

Usando óculos, uma jaqueta informal verde e uma camiseta branca, o dr. Sun parecia mais um professor do que um cirurgião. Com cabelos ralos no topo da cabeça, ele me lembrava Xu Yonghai, um neurologista que se tornou pastor, que eu conhecera seis meses antes em Pequim. Xu, um ativista do movimento das igrejas domésticas, havia sido preso alguns meses antes por pregar na província sudeste de Zhejiang. Nesse dia em especial, o dr. Sun não fez proselitismo.

Para minha surpresa, ele disse que lera meus livros, versões contrabandeadas que conseguira comprar na rua. Quando me cumprimentou com cortesia por meus esforços literários, comecei a me perguntar o que havia no cristianismo que levara esses médicos bem-sucedidos a abandonar a carreira lucrativa em grandes cidades para adotar uma vida cheia de riscos e dificuldades.

Quando pedi permissão para entrevistá-lo, o dr. Sun em princípio recusou. “Eu levo uma vida normal”, disse, com humildade. “Se você tiver interesse, venha comigo às montanhas. Você vai descobrir histórias extraordinárias nas aldeias de lá”.

Claro que eu estava interessado. Eu havia passado metade da vida em busca de histórias extraordinárias de pessoas comuns.

Um ano depois, em dezembro de 2005, o dr. Sun e eu nos encontramos em Kunming, a capital de Yunnan, e iniciamos uma viagem de um mês que nos levou montanhas adentro, primeiro de ônibus e depois num pequeno trator, em perigosos caminhos montanhosos pavimentados com pequenas pedras, que os moradores chamam de “balas duras”. Passamos pelas comarcas de Fumin e Luquan, das quais eu nunca tinha ouvido falar, e depois pelo distrito de Sayingpan, onde a pavimentação acabou. Arrastando-nos ao longo de trilhas sinuosas de barro vermelho, chegamos a um aglomerado de pequenas aldeias cercado por altas montanhas. Segundo o dr. Sun, existia ali uma vibrante comunidade cristã.

O lugar me lembrou um velho ditado chinês: “O céu está muito algo e o imperador muito longe”, referência às regiões tão distantes e isoladas, que parecem se encontrar além do alcance tanto dos poderes divinos quanto seculares. Fiquei curioso por saber como era possível o cristianismo, uma fé estrangeira, encontrar esse caminho e crescer em localidades tão isoladas, onde a vasta modernização que estava arrebatando outras partes da China ainda não havia chegado. Camponeses ainda levavam uma vida escassa, lavrando minúsculas porções de terra com enxadas e pás. A televisão ainda era um luxo, e muitos nunca tinham ouvido falar de geladeiras, para não mencionar computadores ou internet. A assistência médica era quase inexistente. Quando um dos moradores adoeceu, por exemplo, os camponeses precisaram carregá-lo durante seis horas até o hospital mais próximo. No caminho, na estrada irregular, ele morreu. O serviço médico itinerante do dr. Sun constituía a única esperança para os habitantes daquelas aldeias remotas.

Nos dias seguintes, depois que comecei a conversar com alguns dos aldeões, minhas suposições iniciais mudaram gradualmente. Era verdade que peessoas no frio e elevado planalto de Yunnan estavam desamparadas e afastadas dos centros urbanos desenvolvidos. No entanto, num nível mais profundo, a região nunca esteve imune às influências políticas e culturais do mundo exterior. De fato, essa região estava bem ao alcance, tanto dos poderes divinos quanto seculares.

Na aldeia de Zehei, habitada por pessoas da etnia yi, os moradores me levaram à cabana lamacenta de Zhang Yingrong, um ancião da igreja de 86 anos, cujo aspecto pacífico e benevolente me fez pensar em meu falecido pai. Zhang Yingrong falou com carinho sobre a China Inland Mission [Missão para o Interior da China], de Londres, que enviara o primeiro grupo de missionários para Xangai há mais de 150 anos. Naquela época, vários desses missionários do século 19 voltaram a atenção para as aldeias yi escondidas nas montanhas. Devido à falta de transporte moderno, esses estrangeiros, com “cabelos loiros e nariz grande”, montaram no lombo de jumentos, viajando por muitos dias para chegar às aldeias yi, bem a tempo de salvar o povo das montanhas de uma devastadora epidemia bubônica, com a medicina ocidental e o conhecimento de práticas modernas de higiene. Eles também levaram consigo, em traduções inexatas do mandarim, cópias da Shengjing: a Bíblia. A Palavra de Deus, disse Zhang Yingrong, penetrou gradualmente toda a região, ganhando o coração e a mente dos aldeões que, por gerações, haviam encontrado consolo no canto dos xamãs locais e na adoração a deuses pagãos. O pai de Zhang Yingrong estava entre os primeiros adeptos e levou a família inteira consigo. Com o tempo, os missionários fundaram escolas e hospitais. Bem cedo na vida, Zhang Jirong frequentou o Seminário Teológico do Sudoeste e, antes de chegar aos 20 anos, já estava pronto para seguir os passos missionários.

As histórias cativantes de Zhang Yingrong despertaram meu interesse no cristianismo, sobre o qual eu sabia muito pouco. Cresci numa época em que os missionários ocidentais eram retratados como “agentes malignos dos imperialistas”, que subjugavam a mentalidade chinesa, matavam os bebês chineses e arruinavam as culturas nativas do país. Decidi conversar com alguns cristãos locais e, sob a orientação do dr. Sun, me aventurei ainda mais a fundo nos vales das montanhas.

Outro líder cristão, o reverendo Wang Zisheng, da etnia miao, vivia numa aldeia do outro lado de um rio. Ele contou uma história semelhante sobre os missionários de olhos azuis que salvaram vidas e espalharam as palavras do evangelho. E a mesma coisa fez o reverendo Zhang Mao-em, em Salaowu. Com o progresso das entrevistas, descobri um padrão: os moradores haviam herdado a fé cristã dos pais e avós, os quais se beneficiaram dos ensinamentos de determinado missionário estrangeiro. O missionário era inglês, alemão, americano, australiano ou neozelandês? Eles não sabiam. Para eles, isso não era importante. Por meio dos esforços do missionário estrangeiro, que encontrara um terreno fértil para plantar as sementes da fé, o cristianismo fincara raízes mais cedo do que havia acontecido em outras partes da China. Três ou quatro gerações depois, o cristianismo fazia parte da herança de cada família e integrava a história local.

Foi um caminho repleto de conflito e sangue.

“Algumas vezes, demônios costumam seguir os passos de Deus para desfazer seu trabalho”, sussurrou-me um cristão local, referindo-se ao período na década de 1940, quando os comunistas forçaram caminho para lá e a ideologia ateísta de Mao Tsé-tung colidiu violentamente com a fé cristã. Zhang Yingrong, pregador em formação quando os comunistas iniciaram a campanha de redistribuição de terras em 1950, foi rotulado de “latifundiário”, embora não tivesse propriedades em seu nome. Os espancamentos implacáveis, o ajoelhar forçado em telhas quebradas sob chuva torrencial e uma situação perto da inanição o reduziram a um estado de quase paralisia por vários anos.

Outro pastor, Wang Zhiming, liderou o movimento cristão depois que os missionários ocidentais se retiraram da China. Na década de 1950, os oficiais comunistas locais fecharam a igreja e o enviaram ao trabalho no campo para ser reeducado. Ele aceitou em silêncio a realidade da existência sob o comunismo e cessou temporariamente suas atividades eclesiásticas. Durante a Revolução Cultural, quando o Partido lhe desrespeitou um ponto fundamental – ou seja, negou-lhe o direito de orar -, sua atitude foi de rebeldia, e ele estava disposto a abrir mão da vida. Como esperado, ele foi preso enquanto conduzia uma reunião de oração dentro de uma caverna nas montanhas e foi brutalmente executado após uma sessão pública de condenação. Sua língua foi cortada e seu corpo foi feito em pedaços.

Na era Mao, os cristãos locais não tinham permissão para orar e frequentar igrejas e eram forçados a aceitar a ideologia comunista. Eles obedeciam, mas eram poucos os que revelavam sua fé em público. A fim de proteger a fé para que não fosse totalmente suprimida na região, alguns corajosos cristãos se reuniam para cultos dentro das cavernas nas montanhas. Em consequência, o cristianismo sobreviveu, e, poucos anos após a morte de Mao Tsé-tung, veio a desforra. Aldeia após aldeia se tornava território cristão.

Nessa jornada até o povo yi, participei de uma celebração da eucaristia, que os moradores comemoraram como um dia festivo, com abate de porcos e galinhas para um banquete suntuoso.

Cresci em metrópoles onde o cristianismo também tem revivido e florescido na era pós-Mao, mas com uma identidade estrangeira distinta. Muitos novos convertidos são profissionais ricos ou aposentados, muito instruídos. Eles abraçaram o cristianismo do mesmo modo que abraçam a Coca-Cola ou a Volkswagen, acreditando que uma fé estrangeira, tal como produtos feitos no exterior, possui melhor qualidade. [NOTA DA ESTRANGEIRA: não é isso o que nós, brasileiros, estamos também fazendo quando abraçamos a Teologia da Prosperidade dos Mega-Pastores Americanos, ou quando viramos “gospel” porque agora isso é moda até na Rede Globo?] Muitos cristãos urbanos mais jovens atiram-se aos pés de Jesus porque é considerado moderno usar uma cruz e cantar um hino com sonoridade estrangeira.

Nas aldeias yi e miao, o cristianismo faz parte da cultura regional tanto quanto a qiaoba, um bolo especial yi feito de trigo sarraceno. A maioria dos cristãos que conheci eram agricultores pobres e analfabetos, que nada tinham a compartilhar com um visitante, exceto uma rica variedade de histórias. Assim como a qiaoba, o cristianismo é a sustentação da vida para os yi. Para o reverendo Wang Zisheng e o ancião da igreja Zhang Yingrong, a fé lhes permitiu sobreviver à perseguição brutal durante os anos sombrios de Mao. Para Zhang Meizhi, que perdeu o marido, os irmãos e os filhos para as campanhas políticas de Mao, a conversão recente ao cristianismo dissipou sua raiva e lhe proporcionou enfim um pouco de paz. Para um aldeão que fora exilado após matar uma cobra, que os moradores locais acreditavam poder causar lepra, sua recém-adquirida fé cristã o colocou no meio de uma comunidade ampla e acolhedora.

Nas grandes cidades da China, o cristianismo providenciará um refúgio espiritual que acalme a população inquieta, presa na busca incessante por riqueza e conforto material? Certamente mudou a vida do dr. Xu Yonghai e a do dr. Sun. Ou a fé cristã, como o budismo e o taoísmo, irá tornar as pessoas mais submissas ao poder totalitário? Há um debate contínuo entre os estudiosos chineses quanto ao faot de alguns cristãos perdoarem os assassinatos do governo como uma demonstração genuína da benevolência de Deus – ou como uma desculpa para a covardia. Enquanto o partido continua a perseguir cristãos, e mantém um olho atento a qualquer movimentação espiritual que possa desafiar sua autoridade, a disposição dos cristãos em perdoar, no entanto, não é comum a todos. Quando perguntei a uma freira centenária se ela estava disposta a orar e a perdoar o governo comunista que havia destruído sua igreja, ela pulou da cadeira e bateu com os pés, enfaticamente: “Não, claro que não! Eles ainda ocupam as propriedades da igreja! Eu me recuso a morrer! Vou esperar até eles devolverem tudo!”.

Após voltar da viagem com o dr. Sun, o assunto me deixou inquieto. Para continuar minha pesquisa sobre o cristianismo em Yunnan, retornei a Dali em 2009 para rastrear os passos dos primeiros missionários cristãos, muitos dos quais haviam se estabelecido ali e usado a cidade como base de lançamento para missões em lugares mais distantes. Essas viagens me animaram, erguendo-me de minha depressão etílica. As histórias de cristãos heroicos como Zhang Yingrong, o reverendo Wang Zhiming e o dr. Sun me inspiraram, impelindo-me a escrever um livro durante um período em que o Oriente e o Ocidente estão se encontrando e se confrontando em diversas frentes. Nesses cantos remotos, descobri um ponto central, onde o Oriente encontrou o Ocidente, e, embora tenha havia um choque de culturas, existe agora uma nova identidade cristã que é distintamente chinesa.

O caminho tortuoso da montanha na província de Yunnan é vermelho, porque durante muitos anos foi encharcado de sangue.

Liao Yiwu
Chengdu, província de Sichuan, novembro de 2010

2 comentários em “Deus é Vermelho: o cristianismo na China, na visão de um não-cristão

  1. Welandro
    18/02/2012

    Esse texto lembra-me uma música que cantaremos no coral esses dias:

    Eternamente Adorador

    É necessário morrer minhas vontades pra que as Suas venham em mim
    permanecer/
    Não quero ser igual andar com a multidão /
    Não quero ser mais um prefiro ser como João /
    Pregar a verdade onde só falam mentiras /
    Ser adorador mesmo que custe minha vida /

    Eu quero morrer pra este mundo /
    Pois, prefiro viver em santidade… /
    Mesmo se eu for lançado em uma fornalha /
    Não negarei seu nome minha fé não falha /
    Se me lançarem com leões em uma cova /
    Eu vou continuar Te adorando dando glória /

    Na escassez ou na fartura / Glória… na bonança ou na cova /
    Glória… no deserto ou em Canaã… / Glória, eu te darei: “Glória”… /
    Glória… Se a chuva cair / Glória… Se o céu não se abrir /
    Glória Te darei, Glória Te darei…

    Eu serei eternamente teu Adorador / Na cova na fornalha onde for /
    Não temerei / Te adorarei, Senhor… /
    Eu serei eternamente teu adorador / se testado e provado for /
    E eu serei eternamente teu adorador… /

    Sou Teu adorador /

    És meu sustento / Meu alimento / Minha fortaleza, Meu libertador /

    Sou o Teu adorador..

    – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
    Realmente a Igreja perseguida da China me é um baita exemplo, pois lá a coisa é realmente séria e eu sinto que devo dar muuuuuuito mais valor a tudo isso, pois não passo nem de perto por tais situações.
    Glorificado seja Deus por Sua obra maravilhosa.

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  2. Alexanre messias
    10/04/2014

    ualllllllllllllllllllllll

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