Uma estrangeira no mundo

"Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim." – Jo 15.18

Se Deus existe, por que há pobreza?


O título deste artigo é um livro do teólogo Jung Mo Sung. Permito-me transcrever parte do primeiro capítulo:

Cristiano acelera e procura uma brecha no trânsito para aproveitar o semáforo ainda verde, mas a sorte não está do seu lado hoje. No momento em que ele chega ao cruzamento, o sinal vermelho acende e um guarda o olha da esquina com vontade de multá-lo. Ele pára e resmunga. Parece que nada dá certo. No serviço, só problemas. Está atrasado para um encontro na igreja, o trânsito está infernal e os semáforos parecem persegui-lo.

O que o consola no momento é o encontro do qual participará. Ele sabe que quando chegar vai esquecer seus problemas e, como num passe de mágica, se sentirá mais leve. É como se estivesse entrando no mundo dos deuses. Os amigos, a oração, a conversa sobre questões espirituais e aquele ar misterioso e envolvente da igreja: tudo isso faz valer a pena o sofrimento no trânsito.

Essa visão o faz esboçar um sorriso. O corpo relaxa um pouco e ele já se sente na ante-sala do mundo espiritual.  Mas, eis que de repente, como que saído do nada surge à sua frente um menino maltrapilho com um limpador de pára-brisa na mão. Limpador é força de expressão, porque o pequeno objeto, da mesma forma que o menino, mais parece um sujador. Cristiano fecha instintivamente o vidro e com seu dedo indicador faz que “não!”.

O menor, teimoso como todos os meninos de rua, aproxima-se e esboça um gesto em direção ao pára-brisa. Cristiano repete que “não!” com uma voz firme e decidida. O menino se aproxima então de Cristiano e insiste com olhar triste e cansado: “moço, dá um trocado pelo amor de Deus! Tô com fome, moço…”.

Um sentimento de impotência invade Cristiano e ele se sente paralisado. Parece que o tempo parou. Ele quer dizer que não tem trocado, mas a voz não sai. Sente-se culpado, mas não sabe do quê. Quer dar um trocado, mas seu corpo não lhe obedece. Parece trancorrer uma eternidade naquele rápido instante.

Quando o mal-estar parecia insuportável, o semáforo abre e a buzina do carro de trás o resgata daquele “tempo eterno”. Cristiano se vê salvo pela loucura do trânsito e deixa o menor para trás. Está de volta à correria das ruas e à expectativa de chegar à sua igreja no horário.

Algo de diferente lhe acontece, entretanto. Ele não consegue esquecer o olhar do menino. Ele tenta, mas não consegue. Começa a cantar uma música, uma das que está acostumado a cantar nas reuniões do seu grupo, para ser se esquece, mas não dá certo. É como se o menino tivesse imprimido na memória de Cristiano o seu olhar triste e cansado. Um olhar de apelo. Ele se sente interpelado e um sentimento de impotência o toma com força. Mais do que isso, ele começa a se sentir culpado.

Para se defender do sentimento de culpa, Cristiano reage contra a lembrança de acusações desferida aos ricos e de classe média que ouviu. Não se lembra de quem fez as acusações e nem de quando foram feitas, mas, quase que desesperadamente, procura reafirmar sua inocência diante do sentimento de culpa e esquecer-se dele.

Nem o ambiente da igreja nem os amigos parecem ajudá-lo. Há algo de errado com ele. Pragueja contra o menino e seu jeito de falar “pelo amor de Deus, moço…”. Quem é ele para entender de amor de Deus! Alguém que nunca deve ter ido a uma igreja e que deve estar cheio de pecados… Definitivamente, Cristiano não consegue tirar o menino de sua mente. Ele olha para seus companheiros de fé e os vê muito distantes, como se em outro mundo. Perto dele, mas muito longe dali, só está o menino.

Cristiano sente uma vontade grande de compartilhar essa experiência na reunião. Várias vezes ameaça levantar a mão para pedir a palavra, mas o braço parece pesar toneladas. Quer falar, mas não tem coragem. Como que justificando, ele diz para si que esse assunto não tem nada a ver com a reunião. Que só iria atrapalhar e desviar a conversa tão espiritual e agradável do momento.

Na saída, ele dá carona a um amigo e conta sua experiência e a vontade de ter compartilhado o assunto na reunião. O amigo lhe diz: “você fez muito bem em não falar. Isso só iria tumultuar a reunião e desviar o assunto. Afinal, o mais importante, o essencial na igreja não são as questões materiais, por mais que pareçam urgentes e graves. Não podemos esquecer que o essencial é a salvação espiritual. As questões sociais e políticas não devem se misturar às questões espirituais. Na igreja devemos cuidar do espírito. As questões materiais devem ser cuidadas pelos que são responsáveis por elas”.

A resposta do amigo aquietou um pouco o coração de Cristiano. Ela parecia lógica e confirmava tudo o que ele havia aprendido na sua vida de igreja. Apesar de não conhecer muito coisa de religião.

Antes de se deitar, Cristiano pára num de seus lugares preferidos da casa: um pequeno e improvisado espaço de oração. Lá, ele olha para um quadro belo e antigo que ganhara na infância: Francisco de Assis. Fazia um bom tempo que não prestava atenção no quadro, parte do cenário habitual. Mas, nesse momento, algo fez com que ele visse o quadro de um outro jeito – o que ele não devia ter feito. A visão de Francisco de Assis cuidando dos pobres lhe trouxe de novo o olhar do menino. E sua cabeça voltou a fervilhar. Só que com uma diferença: era como se ele recebesse uma luz e conseguisse ver mais claramente as perguntas que lhe corroíam por dentro.

Muitas vezes, Cristiano participara de reuniões de orações em comunidade em que se pedia ajuda material e econômica para algum membro ou até mesmo para ampliar e melhorar as dependências da igreja. Ele próprio já pedira a Deus para resolver algumas dificuldades financeiras. Se isso não era errado, como dizer que a religião não tem nada a ver com as questões materiais? Mal terminara de se fazer a pergunta e lhe veio à mente as cenas prediletas do filme sobre a vida de Francisco de Assis: o jovem Francisco cuidando e dando de comer aos pobres abandonados da cidade de Assis. Ele começava a pressentir algo estranho. Percebia uma incoerência entre sua prática religiosa e sua admiração por pessoas, como Albert Schwweitzer que, em nome da fé cristã, dedicara sua vida às pessoas mais pobres e sofridas, e o discurso de que a religião só trata do espírito e não se envolve com questões materiais.

Agora ele não entendia mais por que havia tanta polêmica em torno da relação entre a fé cristã e os problemas sociais. Antes, a separação entre espiritual e material lhe parecia clara, mas agora bem mais complexa. Começava a desconfiar que vidas admiráveis de cristãos como Francisco de Assis, Martin Luther King Jr e o bispo sul-africano Desmond Tutu entravam em contradição com tal separação.

Além disso, começou a perceber que o mal-estar experimentado junto ao menino e durante o resto da noite não era um simples mal-estar. Era a mistura de dois sentimentos: o de sentir-se interpelado e o de perceber-se impotente. Era como um fogo queimando dentro do peito, tirando a paz que ele sempre buscara na religião. Era uma sensação muito diferente das sentidas nos encontros da igreja, que lhe traziam paz e leveza. De repente, lembrou-se de uma expressão que ouvira na adolescência e que nunca entendera direito: do encontro com Cristo nasce uma “paz inquieta”.

É certo que o que Cristiano estava sentindo era muito mais inquietação do que paz, mas ele começava a entender o significado dessa “paz inquieta” da fé cristã.

Então, o que poderia ser feito? Os problemas são tão grandes! Sentiu uma grande vontade de dizer bem alto: “o mundo é assim mesmo. Eu não tenho culpa!”. Mas, havia algo que o impedia de fazê-lo. Era como se no fundo do coração uma pequena voz sussurrasse: “o mundo não deve ser assim!”.

Cristiano se sentiu muito cansado. Resolveu que não poderia responder todas as perguntas e nem tomar todas as decisões numa só noite. Foi se deitar. Custou a dormir, pois sabia que algo de muito importante havia acontecido em sua vida. Aquele Cristiano que agora procurava descansar não era mais o mesmo de antes. Dormiu desconfiado de que não apenas ele estava mudando, mas também o seu cristianismo.

SUNG, Jung Mo. Se Deus existe, por que há pobreza? São Paulo: Ed. Reflexão, 2008, p. 19-24.

4 comentários em “Se Deus existe, por que há pobreza?

  1. Diogo Bochio
    28/09/2009

    Eu adorei este livro. O Jung tem umas sacadas fenomenais!!
    Este é o tipo de literatura que deveria ser estudado nas EBD. Muito bom mesmo!!

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  2. Daniel
    19/10/2009

    Fui na palestra de lançamento do livro de Jung e gostei bastante. Acho que em tempos onde a teologia da prosperidade predomina, este livro de orientação teológica mais socialista, é importante para enfrentar o espírito capitalista.

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    • Estrangeira
      27/10/2009

      É verdade, Daniel… mas enfrentar esse espírito capitalista só por Deus, quando vemos que a própria Igreja está quase que totalmente conformada com ele… 😦

      Fique na Paz!

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  3. Edimar
    08/12/2010

    A mundança tem que começar pelas Igrejas (Filantrópicas), muitas das vezes tentamos ajudar ao próximo, mas não temos condições financeira ou material, pelo contrário, as Igrejas gastam muito que arrecadam em bens materiais para contrução de Igrejas e paras a cúpula, esquecendo de ajudar ao próximo. Existém belos exemplo de vida ( como ajudar ao próximo), como da Irmã Dulce, Irmã Trereza de Calcutar, Irmão Francisco de Assis e outros que se tornaram Mártires, que sofreram tormentas, torturas ou até a morte, que serve como exemplo de dedicação e amor ao próximo. “POR ISSO ESTÃO DIANTE DO TRONO DE DEUS”.

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Publicado em 26/09/2009 por em Uncategorized.